quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Vida Surrada

Lá fora, as roupas dançavam junto ao vento, balançando no varal. Logo à frente, era possível observar uma cerca rodeada com arames e um portãozinho de madeira. O sol ardia como no calor de um deserto, cheio de miragens e indagações. As folhas das arvores secas estavam no chão daquele quintal pequeno. Frutos? Já não apareciam há muito tempo.

Lá dentro da casinha, as panelas se esquentavam em cima do velho fogão de lenha, e devagar, a madeira ia sendo consumida pelas chamas e brasas. Naquele instante, era feito o pão de cada dia de uma família grande, porém, espremida pela miséria e o trabalho duro na roça.

Quando a enfermidade batia a porta, não podiam contar com muita ajuda, pois o hospital mais próximo ficava longe dali e ainda assim os recursos eram poucos. Muitos padeciam na mocidade. O fogo do lampião iluminava cada canto da palhoça, cada olhar de esperança e aquecia sutilmente os corações gelados em plena seca.

Eram doze filhos no total, cada um com um sonho diferente, mas com algo em comum, sonhavam apenas com uma condição de vida melhor. Nos dias de hoje, a maioria das pessoas nem pensam em ter muitos filhos, mas décadas atrás era um ciclo normal e vicioso.

A falta de estudo empurrava as pessoas degrau abaixo, pois eram exploradas por uma elite repugnante e manipuladora. As famílias exerciam um trabalho árduo sem reconhecimento e o pagamento era a humilhação. Os filhos mais velhos acompanhavam os pais no trabalho pesado, e além de tudo, cuidavam dos irmãos mais novos.

O dia já começava pela madrugada, às quatro da manhã para ser mais exato. O pai e a mãe eram os primeiros a acordar, e pela janela, observavam o céu iluminado com o luar do sertão. O banheiro ficava do lado de fora, aliás, banheiro era o nome que davam para aquela fossa. O almoço era feito naquela hora para ser mastigado frio no almoço.

Enquanto caminhavam de pés descalços no chão de terra vermelha, os pensamentos se misturavam no ar. Para a mãe, era uma judiação submeter os filhos aquele tipo de vida, mas era como se o destino não lhes desse outra chance.

A fome era uma sombra que mudava de forma, mas que sempre os perseguia. O rio, ali perto, aonde as mulheres lavavam as roupas e captavam água, já estava quase seco. No céu, os urubus fitavam os animais que definhavam em meio a fome e a sede.

O trabalho que era desumano se tornava cada vez mais difícil devido ao clima devastador que ameaçava as terras até aonde podia se ver. A ausência da chuva fazia muitos fugirem sem olhar para traz para assim esquecer a miséria indomável.

Ás vezes, de noite, o pai saía lá fora para chorar e esconder dos filhos sua angústia, mas a mãe sempre surgia para nos teus braços se apoiar. Quando se é pai, você sonha em dar uma vida diferente a seu filho - uma que você não teve, pensava ele.

A mãe se desdobrava para fazer o melhor para toda família. Ela tinha o hábito de vigiar os filhos durante a noite. Não era só vigiar, era o cuidado e o carinho por aqueles que um dia fizeram do seu ventre uma morada.

Com o tempo, os dias foram passando e a família foi compreendendo que a solução dos céus nunca chegava, mesmo com tantas noites de oração. Assim, lhes restava à entrega rumo à sobrevivência.

Num certo dia, tomaram coragem e caíram na estrada. De estômago vazio, levaram na mala os poucos pertences e a esperança. Chegando à capital, numa terra revestida de concreto, respiraram o ar da urbanização. Lá, as pessoas caminhavam de um lado para o outro, por todos os cantos sem direção. Pelo olhar e o desprezo, aquela família percebeu que todos sabiam que eles haviam saído dos confins do norte.

Longe de casa e da seca, o retrato do preconceito se tornou o único cartão postal que poderiam enviar para a terra natal. Para eles, tudo naquela terra era imposto e intragável, e pela primeira vez tiveram uma única certeza: qualquer lugar que estivessem sempre viveriam, a vida surrada.

5 comentários:

  1. Cada vez melhor Gelso! A realidade é sofrida, mas a sua escrita é única!

    ;)

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  2. Cara, que texto! Merece ir além de um conto, essa realidade deve ser expressa num livro - uma obra prima, o best seller de quem tem o coração no Sertão. Parabéns por colocar sentimentos tão sinceros nessas palavras! Abraços, amigo.

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  3. O retrato da vida de muitos, escrito tão bem por vc, com sentimento e realismo. Mais uma vez parabéns Gerson.

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  4. Gersito, me passa o seu email, urgentíssimo. rs

    Inté.

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  5. Gelson, só agora parei pra ler
    e confesso. me surpreendi.
    muito bom esse conto mano, mas discordo do Juan. Tem que acabar aí, você terminou com um grand finale, se prolongar demais... perde o tesão e o sentido.

    muito bom,

    abrtz

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