terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Atrás do balcão do bar

Havia certos dias em que o sol mal surgia e eu já podia ouvir lá fora algumas vozes implorando por álcool. Deitado na cama depois de uma noite regrada a taças e mais taças de vinho, comecei a pensar nas histórias que cercavam aquelas paredes.

E foi, de gole em gole, entre um porre e outro, que o senhor tempo ajudou a montar a fachada do botequim. Logo na entrada, uma placa anunciava a marca de mais uma cerveja, era mais uma em meio a tantas outras espalhadas por aí, atraindo as pessoas pelo vício e o consumo excessivos.

Às vezes, de trago em trago, em meio aquela fumaça toda, alguns só pensavam num lugar onde pudessem se afastar da vida rotineira e cotidiana, das confusões do trabalho e conjugais, aonde a bebida fosse barata, a cerveja fosse gelada e o cliente tivesse sempre razão.

No entanto, nem sempre era assim que funcionava. Uma placa no recinto dizia: “Desculpe, não aceitamos fiado”, mas hoje em dia parece que a charlatanice faz parte da natureza do ser humano. E era no piscar dos olhos que alguns tentavam sair à francesa para não pagarem à conta.

Muitas vezes, quando criança, brincando em volta das mesas, eu me espantava com os bêbados sendo arremessados escada abaixo após serem importunos. Essa mesma escada, de três degraus, era o teste de fogo para aqueles que sempre bebiam um pouco mais além da conta. Os tombos e tropeços, sempre nos garantiram boas risadas.

A violência é algo que assusta, mesmo de longe. O meu medo é de que algum dia eu tenha que me deparar com um revólver na cabeça por causa de algo sujo como o dinheiro. Hoje, as pessoas não se dão conta do quanto uma vida é importante e acabam desrespeitando-a na primeira oportunidade.

Porém, quanto a isso nunca tivemos problemas. A comunidade local respeita o lugar onde mora, mas esse respeito é somente uma forma enrustida de não chamar a atenção para algumas coisas que por ali acontecem.

Discussões sobre futebol, mulheres e cerveja, envolvem todo este universo boêmio. Em época de eleições, até mesmo os debates sobre política são frequentes, e a partir de longas conversas, eu passei a enxergar e compreender outras realidades diferentes da minha.

Mas, ao mesmo tempo em que muitos buscam um refúgio na boemia, parece que para alguns é impossível fugir da própria realidade. De repente, lá estavam as esposas exaltadas para buscar os maridos nos dias em que nem se quer voltavam para casa depois do trabalho.

De vez em quando, o som de alguma viola surgia e as modas sertanistas duravam horas e horas, trazendo lembranças e nostalgias de outros tempos.

As partidas na mesa de sinuca normalmente prendem os olhares dos espectadores e, a cada jogada, se ouve os suspiros de tensão. Olhos aflitos, mãos trêmulas e o suor escorrendo no canto da testa. Ainda mais quando o acordo é que o perdedor pague por todas as fichas.

O orgulho faz parte dos jogadores que não ficam satisfeitos enquanto não ganham pelo menos uma partida. Sempre preferi eliminar as bolas ímpares, talvez superstição, mas na verdade o que faz a diferença é só estar num bom dia e nada mais, isso aprendi com o melhor jogador da mesa.

Nos dias de domingo, o futebol é sagrado para muitos, e nos dias de clássico na TV, o botequim ficava apertado com a freguesia dividindo cada espaço por metro quadrado. Quando os times se consagravam a euforia tomava conta de todos e era a maior festa.

Tudo parece uma peça de teatro, aonde cada um tem um papel diferente na trama. Existem os protagonistas, os atores coadjuvantes e os figurantes, todos atuando involuntariamente seguindo um roteiro que nunca foi escrito por ninguém.

Pelas escadas, sobem os velhos aposentados que trabalharam a vida inteira e não suportam ficar em casa, os jovens que vivem no ócio sem se preocupar com o amanhã, as senhoras querendo refrigerantes, as crianças em busca de doces e salgadinhos, os festeiros levando caixas de cervejas para o churrasco na chácara, a galera do fliperama, o pessoal do baralho, e até mesmo, os verdadeiros alcoólatras que só pedem uma dose para acabarem com a tremedeira.

Do lado de dentro, as prateleiras são repletas com vários tipos de bebidas e certo dia, um moço desdenhou o velho botequim e pediu uma dose de uísque, achando que ali não a fosse encontrar, engano seu: lá estava à garrafa intacta como se fosse um troféu, um presente para um bom bebedor. Depois disso, o rapaz um tanto “sem graça”, ainda confessou que não bebia bebidas alcoólicas, quanta ironia.

As histórias que cercam essas paredes são infinitas e por pouco mais de duas décadas fizeram muitos corações baterem mais forte. Até que um dia o coração do velho, já cansado, simplesmente parou.

O tempo continua seguindo seu destino, inevitável e implacável, as pessoas vêm, vão e ficam, mas no fim acabam sempre encontrando seu caminho.

Um dia, eu sei que também encontrarei o meu, e cumprirei normalmente este ciclo, como mais um ser andante nessa terra. Mas, enquanto esse dia não chega, só me resta lembrar de que toda vez ao retornar para casa, terei de atravessar - atrás do balcão do bar.

5 comentários:

  1. Simplesmente espetacular, Gelso. De longe o seu melhor texto... de longe. Com um final emocionante. A metáforas bem usadas. Parabéns, você me surpreendeu, neste.
    Certeza que o cara que pediu o uísque era o Alemão lá. hahahaha.

    Manda notícias, mano.
    saudade.

    Abraço.

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  2. Gersinho, parabéns pelo texto! A narrativa está super realista, emocionante, descrita verdadeiramente com o coração.
    Cara, suas postagens estão cada vez melhores, mas, como já destacado acima pelo nosso amigo Vini, também é a que achei mais bacana.
    Continue sempre nos alimentando com seus textos, pois já viramos fãs desse "Cenário - Preto e Branco".
    Abraços, Juan.

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  3. Lindo mesmo..vc está aí nesse texto, inteiro, honesto.
    Penso que o seu ir faz o seu caminho, ele na verdade nunca estará pronto.
    Torço pra que ele seja lindo como o seu coração é e te devolva com gentileza a legria que nos dar em sermos seus amigos..

    Gde abraço!

    Cintia

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  4. Parabens Primo...
    Voce tem uma mente brilhante..
    muita criatividade...

    Rosi (Prima)

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  5. Gerson Américo,
    Bebi uma dose da melhor bebida que alguém pode beber.
    Foi muito prazeroso passar 5 minutos degustando este texto.
    Parabéns meu amigo,
    Sabia que você era fera, porém foi surpreendente.

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